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20 de Abril de 2024

Onde está o povo soberano?

A tradição do patronato político - 'quem pode manda; obedece quem tem juízo' - continua a existir com todo vigor

Publicado por Cleide Azevedo
há 7 anos

Por Fábio Konder Comparato*

Onde est o povo soberano

(Foto: Beto Barata/PR)

Quando Tomé de Souza desembarcou na Bahia, em 1549, munido do seu famoso Regimento do Governo, e flanqueado de um ouvidor-mor, um provedor-mor, clero e soldados, a organização político-administrativa do Brasil, como país unitário, principiou a existir. Tudo fora minuciosamente preparado e assentado, em oposição à autonomia descentralizadora das capitanias hereditárias. Notava-se apenas, como disse um historiador, uma ligeira ausência: não havia povo. A população indígena, estimada na época em um milhão e meio de almas, não constituía, obviamente, o povo do novel Estado; tampouco o formavam os 1.200 funcionários – civis, religiosos e militares – que acompanharam o Governador Geral. Ou seja, tivemos Estado antes de ter povo.

Em vão procuramos o povo, nos principais acontecimentos de nossa História. Ele teima em permanecer em silêncio, como se fosse privado de palavra. É assim mesmo que o Padre Antônio Vieira, nosso maior orador sacro, o descreve no sermão da visitação de Nossa Senhora, pregado por ocasião da chegada à Bahia do Marquês de Montalvão, Vice-Rei do Brasil, em junho de 1640: “Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra, infans, infante, quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste permaneceu o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. Como o doente não pode falar, toda a outra conjectura dificulta muito a medicina. (...) O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão”.

Dessa advertência, porém, pouco cuidaram os governantes. Um século após, um outro Vice-Rei, o Marquês do Lavradio, no relatório deixado a seu sucessor, aconselhava-o, tranquilamente, a “não fazer caso algum das murmurações do povo”.

Nossa independência, que paradoxalmente não foi o resultado de uma revolta do povo brasileiro contra o rei de Portugal, mas, ao contrário, do povo português contra o rei no Brasil, não suscitou o menor entusiasmo popular. Um observador judicioso, como Saint-Hilaire, que passou vários anos viajando pelo Brasil, pôde testemunhar: “A massa do povo ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: - Não terei a vida toda de carregar a sela de montagem?”

A mesma cena, com personagens diferentes, é repetida 67 anos depois, na Proclamação da República. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava“, lê-se na carta, tantas vezes citada, de Aristides Lobo a um amigo. “Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada. Era um fenômeno digno de ver-se”.

Seria ousado pretender ter havido posteriormente alguma alteração de monta nesse quadro tradicional. A única mudança, talvez, foi o temor de que o povo, algum dia, embora carregando a sela de montagem, venha a tomar o freio nos dentes. A própria Revolução de 1930, por muitos reconhecida como data marcante de nossa evolução político-social, foi desencadeado sob o slogan do então Presidente de Minas, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada: “Façamos a revolução antes que o povo a faça”.

A tradição do patronato político – “quem pode manda; obedece quem tem juízo” – continua a existir com todo o vigor. Contra ela, de pouco vale proclamar enfaticamente, em todas as Constituições que se sucederam a partir de 1934, que “todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”.

Para entender a causa dessa permanente alienação do povo em nossa organização política, é preciso se dar conta de que esta última sempre foi dúplice, nos dois sentidos da palavra: dobrada e dissimulada.

Tal duplicidade surgiu no Brasil desde o início da colonização portuguesa. O direito oficial, as Ordenações do Reino de Portugal, provinha da metrópole. Tratava-se, portanto, de regras importadas, totalmente estranhas ao meio brasileiro. A tais regras devia-se apenas respeito, mas não necessariamente obediência, à semelhança da máxima difundida em toda a América Espanhola: “as Ordenações del-Rei, Nosso Senhor, devem ser acatadas, mas não precisam ser cumpridas”.

Na verdade, se ninguém contestava durante o Brasil Colônia que o poder oficial pertencia a Sua Majestade, o rei de Portugal, ninguém tampouco ignorava que o poder efetivo não era por ele exercido, mas sim por dois grupos estreitamente associados entre si: o dos senhores de engenho e grandes fazendeiros, de um lado, e o dos principais administradores públicos vindos de Portugal, de outro lado. Sem dúvida, os componentes dessa associação, ou melhor, dessa sociedade mercantil, foram mudando no correr dos séculos. Na atual fase de capitalismo financeiro, os potentados econômicos privados não se localizam mais no setor industrial, como no século passado. São os bancos transnacionais.

Mas a sociedade lucrativa permaneceu inalterada até hoje. Seu patrimônio é constituído pelos recursos públicos arrecadados do povo e pelas propinas tradicionalmente recebidas pelos agentes de governo. Eis por que a corrupção é uma doença que vigora endemicamente em nosso país há 5 séculos.

Mas qual a razão da crise política que estamos agora sofrendo? Houve alguma mudança no esquema oligárquico tradicional? Mudança propriamente não houve, mas sim um início abortado de transformação política, que encheu de temor os dois componentes da nossa oligarquia. Pela primeira vez, desde a Independência, um Chefe de Estado, eleito pelo povo (e não escolhido em nome dele pelos oligarcas), um homem de origem proletária e operário de profissão, encerrou dois mandatos presidenciais com 80% da aprovação popular.

Em consequência, a partir daí, a nossa oligarquia não pensou em outra coisa, senão em montar e pôr em execução, com apoio de fiéis amigos de Tio Sam (políticos, magistrados, membros do Ministério Público e agentes policiais), um esquema completo para impedir a eleição de Lula em 2018.

O desfecho final não tarda. Seu anúncio não virá de Brasília, mas de Curitiba.

* Fábio Konder Comparato é advogado, escritor e jurista brasileiro. Professor Emérito da Faculdade de Direito da USP, onde foi professor.

Fonte: Carta Maior

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27 Comentários

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Não sei se entendi bem o que quis expressar, na verdade, o nobre professor; por um lado, parece que ele deseja abrir os nossos olhos e o nosso entendimento para que saiamos do anonimato e façamos com que os governantes entendam que "quem manda é o povo", mas por outro lado, ao finalizar os seus esclarecimentos, o professor faz um esboço, no qual exalta os 2 mandatos presidenciais do Lula e acrescenta, pelo que entendi no meu parco modo de ver, que a operação investigativa dos procuradores e da polícia federal visa apenas impedir que Lula volte ao poder em 2018; ora, Senhores, isso me parece um tendencioso modo de gritar, por baixo dos panos, que o governo exercido pelo "vermelho pt" foi bom e por isso se fez notório por 2 mandatos consecutivos...não é bem isso o que podemos ver na atual situação do país, que se resume em pobreza, miséria, desemprego, escândalos, corrupções abertas e descaradas, impunidades e acobertamentos de roubalheiras extremas e os implicados em tudo isso, continuam governando; Lula se manteve no poder por causa da ignorância e da pobreza de grande parcela do povo Brasileiro, onde se vota naquele que rouba muito, mas dá alguma migalha para o seu curral eleitoral, a título de boa política social; e assim, milhões de pessoas são enganadas pela cúpula criminosa do governo e a cada dia o país fica mais pobre e pagando mais e mais impostos...Ninguém suporta mais isso; o Brasil tem que reagir contra tudo isso e já! continuar lendo

Nobres colegas, trata-se o texto de um verdadeiro víeis promocional do Srº Lula, acompanhado de sonetos dos quais tentam justificar a ocorrência do assalto aos cofres públicos que ocorreram no governo dele e da Dona Dilma, aduzindo como justificativa que a corrupção no Brasil encontra-se arraigada desde o Brasil Império, pode até ser, mas isto, não se traduz em salvo conduto para justificar o roubo aos cofres públicos praticado no governo Lula, ratificado no Governo Dilma e apadrinhado por seus correligionários e aliados políticos. O Lula terminou seu governo com 80% de aprovação, no entanto, naquela época a tampa do esgoto não havia sido arrancada pela lava jato, a lama podre da corrupção veio a mostra ainda no governo da sua correligionária Dilma. Através desta longa operação da lava jato é que se mostrou a verdadeira face do lobo Lula. dos seus correligionários e aliados. O Brasil foi sugado durante doze anos por estes vampiros políticos insaciáveis, ostentando um brasão populista, tendo ainda como plataforma política, uma dialética demagógica e sofista para enganar os menos desavisados e tolos. Hoje, o Brasil se encontra na UTI, graças a esses verdadeiros vampiros salteadores dos cofres públicos, sangrou o pais até o ultimo momento. Alguns destes vampiros políticos ainda se encontram no poder, mas a hora deles irá chegar, inclusive, deste pretenso futuro ex candidato a presidência que chamam de Lula. Não adianta tentar promovê-lo, o povo brasileiro não e bobo e muito menos, burro para cometer o mesmo erro duas vezes. A reação popular será com o voto e com as garras da justiça na garganta destes vampiros políticos, o cidadão de bem não sai às ruas para destruir prédios públicos ou depredá-los, nem destrói a cidade sob o argumento de protestos. A reação do cidadão de bem é pelas vias legais, pelo civismo e pelo voto. Ao autor do texto digo, guarde sua dialética demagógica para acalentar o Lula na cadeia. continuar lendo

Claramente está defendendo "os coxinhas vermelhos, ursurpadores do direito, os que jogam os que não tem dinheiro a culpa pelos"que tem empregos e recebem... Joga. Uns contra os outros e depois vão de helicóptero ou jatinho onde tem um ótimo hotel... Aí a galera assiste preso sem. Fazer nada recebendo vários reais por mês é o cidadão de bem sem salário ou direitos é só dar bolsa família, tranquilo... Vão viver de assistencialismo barato trouxas de alguns... continuar lendo

Sem dúvidas um excelente e lúcido texto, entremeado de sutil cinismo, e que faz um revisão da origem de nossa eterna indolência.
Quando os nossos milhões de cegos voltarão a ter pelo menos uma vista boa?? continuar lendo

Espero que isso aconteça o mais breve possível, caro Guido jr! continuar lendo

Excelente e elucidativo texto, cujo Autor, com refinada maestria, lança luz sobre os reais motivos da crise político-econômica produzida pela oligarquia amendrontada com a possibilidade do povo tomar os freios do País. continuar lendo

Ententi que o mesmo com palavras coloniais chega a conclusão que LULA é a solução pois encerrou dois mandatos presidenciais com 80% da aprovação popular. Ocorre que após o período se descobriu as falcatruas do que tinha por traz, chegando ao ponto do mesmo em escuta legal Esculachar este país e demonstrar o desprezo que tem tanto pela população quanto pelo povo, e a sua esposa descaradamente mandar a população enfiar o cabo de uma panela no c. OU SEJA na mídia um santo,na calada da noite um Monstro. Não devemos esquecer que este SR. disse que vai tacar fogo neste pais. Não precisa ser um gênio para ver que ele deturpou e matou o Partido do PT (o mesmo não tem mais moral) fez mil e uma tramóias dentro do planalto, planalto que ele transformou em um castelo de horrores. E hoje ele se posta de santo e os incautos acreditam ainda. continuar lendo

e demonstrar o desprezo que tem tanto pela população quanto pelo povo
CORREÇÃO: e demonstrar o desprezo que tem tanto pela população quanto pelos PODERES
Desculpem por alguns erros de ortografia, meus olhos devido a catarata e cirurgia mal feita não fazem mais a correção ortográfica
Obrigado continuar lendo