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25 de Abril de 2024

Vidas paralelas: Pierre Cauchon e Sérgio Moro

Publicado por Cleide Azevedo
há 7 anos

Por Fábio de Oliveira Ribeiro

Vidas paralelas Pierre Cauchon e Srgio Moro

Desde de que as bases para um distanciamento ontológico entre filosofia e a sofística foram lançadas por Sócrates no século IV aC o Ocidente é assombrado pela distinção entre aparência e a essência das coisas, dos fenômenos e do ser. Cada filósofo que se debruçou sobre este problema sugeriu uma abordagem, uma solução ou nova forma de problematizar esta distinção. Na parte que me toca, procuro usar esta distinção para ver através dos fatos conteúdos que eles escondem ou podem esconder.

A tarefa de retirar do presente todo o seu brilho não é fácil. Além disso, é difícil não incorrer em analogias grosseiras que revelam apenas preconceitos ou preferências políticas. É preciso olhar nas rachaduras que se apresentam no quadro do presente para lá encontrar depositada, se possível, a poeira de um passado distante ou não tão distante que insiste em determinar as relações entre as autoridades e os cidadãos comuns.

Revi hoje o interrogatório de Lula. Prestei atenção especificamente aos momentos em que Sérgio Moro se afastou dos fatos descritos na acusação (perguntas sobre o Mensalão do PT, referências ao PowerPoint de Deltan Dellagnol acusando Lula de ser o chefe de todo o esquema de corrupção, questões sobre matérias jornalísticas e sobre o sítio utilizado por Lula, etc…) para tentar ver a verdadeira natureza do interrogatório.

Como disse em outro lugar:

“No Brasil o processo penal tem características fixas e definidas por regras inseridas na Constituição Federal, no Código Penal e no Código de Processo Penal: ao ofertar a acusação, o MPF deve descrever os fatos imputados ao réu e indicar em que tipo penal ele incorreu; o réu se defende especificamente dos fatos que lhe foram imputados; ao prestar depoimento ele não tendo qualquer obrigação de responder questões alheias à denúncia e que dizem respeito às suas predileções morais, políticas, religiosas, partidárias ou ideológicas, pois a CF/88 garante a liberdade de consciência; o juiz pode condenar ou não o acusado, mas ao proferir a sentença deve se limitar aquilo que foi objeto da acusação. O réu não pode ser condenado por fato diverso daquele que o réu foi acusado.

Inquirido sobre questões que não lhe foram atribuídas na peça acusatória, Lula se recusou a exercer seu direito de ficar calado. As respostas que ele deu foram contundentes e tiveram um efeito negativo sobre o juiz e sobre a natureza do processo que ele conduz. Procede, portanto, a suspeita de que a Lava Jato tem uma natureza política. Todavia, a natureza fixa do processo não poderia ter sido desprezada pelo juiz. Ele é um técnico e deveria se limitar aquilo que se espera dele.”

http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/sergio-moro-conseguiu-apagarachama-da-lava-jato

O abuso cometido ontem é tão evidente que causou indignação de vários juristas. Até um entusiasta da Lava Jato repudiou a conduta pouco profissional de Sérgio Morohttp://www.revistaforum.com.br/2017/05/11/apos-depoimento-de-lula-jurista-pede-para-retirar-artigo-de-moro-em-livro/.

Meditando sobre este abusos (rachaduras evidentes que se apresentam num quadro do presente que escondem a poeira do passado) lembrei-me dos meus livros que abordam o caso de Joana D’Arc: Joana D’Arc - a lenda e a realidade, Frances Gies, Zahar, Rio de Janeiro, 1982; Joana D’Arc - uma biografia, Donald Spoto, Planeta, São Paulo, 2009 e; Joana D’Arc, Mark Twain, BestBolso, Rio de Janeiro, 2013. Também recordei da coleção de filmes sobre Joana D’Arc: The Messenger (1999), Joana D’Arc (1999), Saint Joan (1948), Joana D’Arc (1916), Joana D’Arc (minisérie de 1984), Joana D’Arc (1957).

Como sou advogado o que mais me interessa no caso de Joana D’Arc é o processo a que ela foi submetida e, em particular, a atuação do juiz. Encarregado de conduzir o processo, Pierre Cauchon cometeu várias irregularidades. Ele inquiriu a acusada várias vezes, a cada interrogatório as perguntas se tornaram mais sofisticadas e passaram a explorar discrepâncias entre as respostas dadas nos interrogatórios anteriores. As respostas dela nem sempre eram registradas fielmente. Algumas vezes elas nem mesmo eram registradas. Esgotada física e mentalmente a partir de certo momento Joana não tinha mais condições de avaliar e julgar sua própria performance diante de homens que, além de estarem descansados, eram muito mais cultos do que ela.

Entre os interrogatórios, ela foi apresentada aos instrumentos de tortura. Também foi obrigada a usar roupas femininas. Maltratada pelos guardas ingleses ela voltou a vestiu as roupas masculinas que tinha se acostumado a usar em virtude de viver entre soldados e sua conduta foi reprovada por Pierre Cauchon.

Aconselhada pelo juiz, Joana D’Arc admitiu a culpa acreditando que poderia ser absolvida. Todavia, o documento que Joana D’Arc assinou - que segundo Massieu e outras testemunhas tinha apenas 8 linhas em que ela declarava que não mais usaria armas, não vestiria roupas masculinas nem cortaria o cabelo - foi substituído por outro bem mais longo, contendo uma confissão detalhada. Este documento forjado por Thomas de Courcelles foi juntado ao processo por ordem de Cauchon.

Condenada à prisão perpétua por causa da confissão Joana D’Arc voltou atrás e foi excomungada. Entregue à justiça secular ela foi imediatamente a queimou na fogueira sem que ela pudesse recorrer ao Papa.

A imagem de Pierre Cauchon ficou eternamente manchada, pois um dos colegas que ele convocou para julgar Joana D’Arc se recusou a participar da farsa dizendo que a culpa deveria ser estabelecida depois da colheita de provas e não antes disto. Em razão desta e de outras nulidades, o processo foi anulado e Joana acabou sendo reabilitada.

“Na época da Reabilitação ele já estava morto, e muitas testemunhas, elas próprias bastante envolvidas no resultado do julgamento de Joana, atribuíram-lhe a maior parte da culpa. Estes testemunhos foram aceitos pela maioria dos autores que tratam do assunto.” (Joana D’Arc - a lenda e a realidade, Frances Gies, Zahar, Rio de Janeiro, 1982, p. 167)

“A ânsia de Cauchon em julgar Joana certamente sugere interesse próprio. Homem ambicioso, enérgico e capaz, Cauchon via Joana como um caso de vingança pessoal. Por outro lado, é bem provável que ele acreditasse estar agindo no interesse da verdade e da justiça.” (Joana D’Arc - a lenda e a realidade, Frances Gies, Zahar, Rio de Janeiro, 1982, p. 167)

“Era padrão que o prisioneiro fosse entregue oficialmente ao tribunal secular, que deliberaria sobre uma sentença e então decidiria o momento, a adequação e o local da punição. Mas, como vinha fazendo há meses, Cauchon ignorou as propriedades de um julgamento inquisitorial. Ele simplesmente acenou com a cabeça ao oficial de justiça e os ávidos ingleses, com Bedford, Warwick e outros, à frente, correram para cumprir sua tarefa.

Para economizar tempo e evitar objeções de último minuto, tudo tinha sido preparado com cuidado - o poste estava firmemente fixado ao chão, ao centro do mercado; a lenha e os gravetos estavam em seus lugares; tochas já estavam prontas para acender a fogueira; os guardas tinham espadas e lanças prontas para o caso de clamor público; e as correntes foram trazidas da cela de Joana, para melhor prendê-la ao poste e evitar que ela, que acreditavam ser uma bruxa, saísse voando.” (Joana D’Arc - uma biografia, Donald Spoto, Planeta, São Paulo, 2009, p. 255)

“No decorrer dos julgamentos, tudo que Joana dizia era distorcido e usado contra ela; e todas as vezes em que suas respostas não tinham como ser distorcidas, elas não eram registradas. Foi numa ocasião assim que ela fez aquela repreensão patética a Cauchon: 'Ah, o senhor manda registrar tudo que é contra mim, mas não deixa que registrem o que é a meu favor.' "(Joana D’Arc, Mark Twain, BestBolso, Rio de Janeiro, 2013, p. 471)

“Os velhos generais de Joana, seus secretários, vários parentes já idosos e amigos seus de Domrémy, membros da corte de justiça que ainda não tinham morrido e pessoas que secretariaram os processos de Rouen e Poitiers - uma revoada de testemunhas, algumas das quais tinham sido suas inimigas e acusadoras -, todas essas pessoas prestaram juramento e deram seu testemunho. E tudo que disseram foi anotado. Naqueles depoimentos tomados ali foi surgindo a história de Joana D’Arc, desde sua infância até seu martírio. Era uma história comovedora e bela. Do veredicto ela surge absolutamente imaculada, em mente e espírito - pura em tudo que disse e em tudo que fez. E assim ela permanecerá para sempre, até o fim dos tempos.” (Joana D’Arc, Mark Twain, BestBolso, Rio de Janeiro, 2013, p. 473)

A conduta reprovável de Pierre Cauchon pode ser vista em todas as versões cinematográficas da saga de Joana D’Arc. Mesmo Luc Besson, que problematiza as visões de Joana D’Arc e a interpretação que ela fez delas, o juiz não é poupado. É simplesmente impossível não admitir que Cauchon queria condenar aquela jovem de Domremy que, de uma forma ou de outra, mudou o curso de sua história pessoal para mudar a História da França. Durante todo o processo e até ao final dele, o juiz não poupou esforços para obter um resultado pré-determinado no início do processo.

Ecos da conduta de Cauchon podem ser vistos na atuação de Sérgio Moro durante o interrogatório de Lula. Ao se afastar da peça acusatória para inquirir o réu sobre fatos acerca dos quais ele não foi acusado, o juiz da Lava Jato cometeu uma falha técnica imperdoável.

O longo e cansativo interrogatório a que Lula foi submetido inclusive sobre sobre fatos triviais e irrelevantes (conhecer ou não determinadas pessoas, opiniões sobre outros processos), só pode ser interpretado como uma tentativa de obter a confissão pelo cansaço. A mesma técnica foi utilizada contra Joana D’Arc. Ela foi interrogada e reinterrogada várias vezes sobre os mesmos fatos e sobre sofisticadas questões religiosas acerca das quais ela, apenas uma camponesa, não teria conhecimento.

Pierre Cauchon obviamente teve mais liberdade para manipular o processo do que Sérgio Moro. O registro em vídeo do depoimento de Lula não só impede falsificações grotescas como servirá de prova na Corte de Direitos Humanos da ONU. Mesmo que condene o réu, o juiz da Lava Jato não conseguirá impedi-lo de recorrer. Joana D’Arc era uma prisioneira entre inimigos que queriam queimá-la em virtude de terem sido derrotados por ela nos campos de batalha. Lula não será julgado apenas por Sérgio Moro e ele tem algo que nem mesmo o seu juiz conseguirá ter: reconhecimento por autoridades internacionais.

Joana D’Arc foi reabilitada, mas já havia sido executada há mais de duas décadas quando isto ocorreu. O efeito da reabilitação dela foi apenas histórico. Ao que tudo indica, Lula conseguiu se reabilitar diante de seu próprio inquisidor http://jornalggn.com.br/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro/sergio-moro-conseguiu-apagarachama-da-lava-jato. Creio que o destino de Sérgio Moro não será melhor que o de Pierre Cauchon. Mas ao contrário de seu infame paradigma francês, a imagem do juiz da Lava Jato não foi lentamente construída pelos depoimentos colhidos num processo de reabilitação. Uma verdadeira imagem de Sérgio Moro foi por ele mesmo construída no vídeo da audiência que ele conduziu.

Pierre Cauchon fez o que fez porque era um príncipe da Igreja Católica a serviço de um reino poderoso. Sérgio Moro também acredita ser um príncipe da Justiça Federal e se colocou a serviço de um Estado poderoso (aquele para o qual ele viaja constantemente). Os séculos que os separam não nos impedem de ver que ambos compartilham duas outras características: a ambição e a crença de que poderiam administrar sua própria imagem. Pobre Cauchon, pobre Moro.

Em defesa de ambos a única coisa que podemos dizer é que os homens que se acreditam poderosos estão fadados a agir e a sofrer. Mas sofrimento deles nem sempre é físico. A agonia infamante dos juízes que cometem abusos em processos que simbolizam uma época se prolonga na história. E nos domínios dela, meus caros, as aparências sempre desaparecem para que a essência possa brilhar.

Fonte: Jornal GGN/blog/fabio-de-oliveira-ribeiro

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